O QUE NÃO TEM FIM NEM TEM COMEÇO
O Projeto Respiração tem surpreendido no sentido de ter proposto algumas combinações inusitadas de artistas, em uma primeira aproximação, nem sempre compreensíveis ou de associação imediata e transparente. Mas, para além do discurso repetitivo das diferenças (já amplamente incorporado) da globalização, da multiplicidade e das misturas pós-modernas, é possível um pensamento que indique um substrato comum, que deve ser evidenciado pelo exercício perceptivo do curador, que não apazigua as diferenças, mas, ao contrário, as reinstaura na sua potência e ajuda a quebrar o raciocínio simplista e redutor que vem predominando na prática artística, que confunde a diferença com o inusitado.
O que busco evidenciar, então, para além do discurso das “diferenças democráticas”, quando proponho juntar duas artistas tão distintas entre si, como Maria Nepomuceno e Sara Ramo? Ao que me refiro quando escrevo substrato comum? Minha resposta é simples: o substrato comum é a liberação do campo da experiência. Mas que tipo de experiência? A simples experimentação pela experimentação? Não. O que me interessa é o plano da experiência como o lugar do acontecimento da liberdade. Da mesma maneira como quando Mário Pedrosa enuncia “a arte como exercício experimental da liberdade”. É no plano da experiência que a liberdade é possível, não como um valor subjetivo ou objetivo, nem como livre arbítrio, mas como um fluxo que permite a percepção do mundo como imanência. É através da potência da arte que conseguimos nos conectar de forma direta, sem intermediações ao “substrato comum”, que é o plano da experiência, e descobrir a imanência como o lugar onde, aí sim, a multiplicidade explode e nos faz perceber a densidade da existência. Por isso que as variações infinitas da forma não interessam como forma em si, mas como o vislumbrar de que ação e percepção são inseparáveis. E que, por essa razão, a forma na arte não se refere à ficção de uma subjetividade que imprime (ou molda) a matéria segundo as leis da forma ou aos impulsos da subjetividade, mas corresponde à percepção de que aquilo que denominamos subjetividade de um artista (ou seu estilo) não é outra coisa senão um desvio no tempo, uma densificação da ação e da percepção, conjugada à imaginação de uma singularidade atravessada pela sua posição no momento / instante em que atravessa o mundo. Com isso a forma torna-se passageira, no sentido de que é sempre a enunciação de sua transformação e por isso também a forma pode definir uma época, que corresponde a distintas densificações de ações e percepções de um dado tempo.
O que me levou a aproximar essas duas artistas foi a possibilidade de revelar os deslocamentos que a vida produz no plano da experiência, pelas contingências da vida de cada um, e que engendram a diferença como emergência da liberdade. Não se trata de formas diferentes, mas de localizações diferenciadas no plano da experiência que instauram obras distintas. Na realidade, o que impulsionou a 15ª edição do Projeto Respiração foi a pergunta sobre o campo comum que pode sustentar as diferentes possibilidades de manifestação da obra de arte.
Maria Nepomuceno e Sara Ramo fazem emergir, através de suas ações, pontos de densificação distintos no plano da experiência.
Para Maria Nepomuceno o fazer (tátil artesanal) é fundamental. É esse elemento que faz sua obra pulsar. Por isso denominou Pulso sua intervenção, referindo-se tanto ao pulso como uma parte do corpo humano importante no movimento do fazer das mãos, como também a pulso de pulsação das forças do universo. Ela parte de estruturas simples – a linha (as cordas) e o ponto (as miçangas) que, costuradas em forma de espiral, permitem que ela construa planos, que se desdobram em superfícies topológicas, que tendem à expansão infinita. Há no seu trabalho um movimento de contração e expansão. A contração é o próprio fazer e delimita o espaço e propicia a expansão, que é o território que está aquém e além do seu fazer e que se remete aos fluxos da natureza e da cultura. Por isso, ao entrarmos no seu trabalho, podemos ter a sensação de estar suspensos no espaço sideral, de uma quase ficção científica (como na Sala Renascença); ou em contato com formas da natureza que nos remetem às culturas dos povos indígenas ou do artista popular (como no Jardim). A artista busca, a partir de uma estrutura orgânica de uma forma que se metamorfoseia, dar conta dos fluxos da natureza e da cultura do nosso entorno, dando expressividade à questão entre o que é local e o que é global.
No segundo andar da Fundação está Sara Ramo, que ocupa o Quarto de Dormir, o Closet e o Banheiro, a área mais íntima da casa-museu de Eva Klabin. O ponto de densificação, onde sua ação e sua percepção se cruzam, é o cotidiano. É a partir dele, das pequenas ocorrências do dia a dia, que a obra de Sara Ramo se constitui, mergulhando no universo da imaginação, ao revelar revolvendo camadas de sensações que fazem emergir imagens de estranheza daquilo que nos parece natural. Assim que visitou a casa, visando à intervenção, o que lhe chamou a atenção foi o fato de Eva Klabin trocar o dia pela noite; de viver na penumbra e não na luz do Sol, numa cidade solar. O lugar da penumbra é também quando estamos mais próximos do sono, imersos nas fantasias hipnagógicas. É dessa sensação que surge a intervenção Penumbra, como se víssemos aquilo que normalmente não podemos ver quando as pessoas dormem. Nas palavras da artista: “essa parte da realidade que acontece enquanto dormimos”. Sara Ramo traz à superfície um cenário que revela camadas da realidade às quais só temos acesso na nossa intimidade e que, ao serem reveladas, criam um deslocamento que dá a dimensão real daquilo que nos aparece irreal. Ela desencadeia uma percepção fílmica ao revelar o negativo da casa, do museu e da manhã.
A proposta da 15ª Edição é a de radicalizar aquilo que de fato já acontece no Projeto Respiração: querer surpreender ou identificar, a partir das intervenções dos artistas, o processo da diferenciação, que é a chave do fazer artístico e que nos possibilita aproximar de um substrato metafísico não transcendental, que dá a espessura do existir. Ao enfatizar o território da casa-museu de Eva Klabin como plano de experiência, a relação sujeito-objeto é desmistificada, evidenciando a ação e a percepção como os elementos capazes de criar localizações no real que revelam a especificidade daquilo que é singular. O processo da arte trata disso.
Tanto a ação / percepção que a obra de Maria Nepomuceno manifesta no mundo, ao buscar a aproximação das forças da exterioridade com vistas à totalidade das energias cósmicas, partindo da mão que faz para atingir a dinâmica da natureza e da cultura; quanto a ação / percepção desencadeada através da obra de Sara Ramo, que parte do banal do cotidiano e nos dá a dimensão da vida na imensidão da intimidade, são um convite a entrarmos num mundo que não tem fim nem tem começo, onde o real pulsa na sua radicalidade imanente.
O Projeto Respiração tem surpreendido no sentido de ter proposto algumas combinações inusitadas de artistas, em uma primeira aproximação, nem sempre compreensíveis ou de associação imediata e transparente. Mas, para além do discurso repetitivo das diferenças (já amplamente incorporado) da globalização, da multiplicidade e das misturas pós-modernas, é possível um pensamento que indique um substrato comum, que deve ser evidenciado pelo exercício perceptivo do curador, que não apazigua as diferenças, mas, ao contrário, as reinstaura na sua potência e ajuda a quebrar o raciocínio simplista e redutor que vem predominando na prática artística, que confunde a diferença com o inusitado.
O que busco evidenciar, então, para além do discurso das “diferenças democráticas”, quando proponho juntar duas artistas tão distintas entre si, como Maria Nepomuceno e Sara Ramo? Ao que me refiro quando escrevo substrato comum? Minha resposta é simples: o substrato comum é a liberação do campo da experiência. Mas que tipo de experiência? A simples experimentação pela experimentação? Não. O que me interessa é o plano da experiência como o lugar do acontecimento da liberdade. Da mesma maneira como quando Mário Pedrosa enuncia “a arte como exercício experimental da liberdade”. É no plano da experiência que a liberdade é possível, não como um valor subjetivo ou objetivo, nem como livre arbítrio, mas como um fluxo que permite a percepção do mundo como imanência. É através da potência da arte que conseguimos nos conectar de forma direta, sem intermediações ao “substrato comum”, que é o plano da experiência, e descobrir a imanência como o lugar onde, aí sim, a multiplicidade explode e nos faz perceber a densidade da existência. Por isso que as variações infinitas da forma não interessam como forma em si, mas como o vislumbrar de que ação e percepção são inseparáveis. E que, por essa razão, a forma na arte não se refere à ficção de uma subjetividade que imprime (ou molda) a matéria segundo as leis da forma ou aos impulsos da subjetividade, mas corresponde à percepção de que aquilo que denominamos subjetividade de um artista (ou seu estilo) não é outra coisa senão um desvio no tempo, uma densificação da ação e da percepção, conjugada à imaginação de uma singularidade atravessada pela sua posição no momento / instante em que atravessa o mundo. Com isso a forma torna-se passageira, no sentido de que é sempre a enunciação de sua transformação e por isso também a forma pode definir uma época, que corresponde a distintas densificações de ações e percepções de um dado tempo.
O que me levou a aproximar essas duas artistas foi a possibilidade de revelar os deslocamentos que a vida produz no plano da experiência, pelas contingências da vida de cada um, e que engendram a diferença como emergência da liberdade. Não se trata de formas diferentes, mas de localizações diferenciadas no plano da experiência que instauram obras distintas. Na realidade, o que impulsionou a 15ª edição do Projeto Respiração foi a pergunta sobre o campo comum que pode sustentar as diferentes possibilidades de manifestação da obra de arte.
Maria Nepomuceno e Sara Ramo fazem emergir, através de suas ações, pontos de densificação distintos no plano da experiência.
Para Maria Nepomuceno o fazer (tátil artesanal) é fundamental. É esse elemento que faz sua obra pulsar. Por isso denominou Pulso sua intervenção, referindo-se tanto ao pulso como uma parte do corpo humano importante no movimento do fazer das mãos, como também a pulso de pulsação das forças do universo. Ela parte de estruturas simples – a linha (as cordas) e o ponto (as miçangas) que, costuradas em forma de espiral, permitem que ela construa planos, que se desdobram em superfícies topológicas, que tendem à expansão infinita. Há no seu trabalho um movimento de contração e expansão. A contração é o próprio fazer e delimita o espaço e propicia a expansão, que é o território que está aquém e além do seu fazer e que se remete aos fluxos da natureza e da cultura. Por isso, ao entrarmos no seu trabalho, podemos ter a sensação de estar suspensos no espaço sideral, de uma quase ficção científica (como na Sala Renascença); ou em contato com formas da natureza que nos remetem às culturas dos povos indígenas ou do artista popular (como no Jardim). A artista busca, a partir de uma estrutura orgânica de uma forma que se metamorfoseia, dar conta dos fluxos da natureza e da cultura do nosso entorno, dando expressividade à questão entre o que é local e o que é global.
No segundo andar da Fundação está Sara Ramo, que ocupa o Quarto de Dormir, o Closet e o Banheiro, a área mais íntima da casa-museu de Eva Klabin. O ponto de densificação, onde sua ação e sua percepção se cruzam, é o cotidiano. É a partir dele, das pequenas ocorrências do dia a dia, que a obra de Sara Ramo se constitui, mergulhando no universo da imaginação, ao revelar revolvendo camadas de sensações que fazem emergir imagens de estranheza daquilo que nos parece natural. Assim que visitou a casa, visando à intervenção, o que lhe chamou a atenção foi o fato de Eva Klabin trocar o dia pela noite; de viver na penumbra e não na luz do Sol, numa cidade solar. O lugar da penumbra é também quando estamos mais próximos do sono, imersos nas fantasias hipnagógicas. É dessa sensação que surge a intervenção Penumbra, como se víssemos aquilo que normalmente não podemos ver quando as pessoas dormem. Nas palavras da artista: “essa parte da realidade que acontece enquanto dormimos”. Sara Ramo traz à superfície um cenário que revela camadas da realidade às quais só temos acesso na nossa intimidade e que, ao serem reveladas, criam um deslocamento que dá a dimensão real daquilo que nos aparece irreal. Ela desencadeia uma percepção fílmica ao revelar o negativo da casa, do museu e da manhã.
A proposta da 15ª Edição é a de radicalizar aquilo que de fato já acontece no Projeto Respiração: querer surpreender ou identificar, a partir das intervenções dos artistas, o processo da diferenciação, que é a chave do fazer artístico e que nos possibilita aproximar de um substrato metafísico não transcendental, que dá a espessura do existir. Ao enfatizar o território da casa-museu de Eva Klabin como plano de experiência, a relação sujeito-objeto é desmistificada, evidenciando a ação e a percepção como os elementos capazes de criar localizações no real que revelam a especificidade daquilo que é singular. O processo da arte trata disso.
Tanto a ação / percepção que a obra de Maria Nepomuceno manifesta no mundo, ao buscar a aproximação das forças da exterioridade com vistas à totalidade das energias cósmicas, partindo da mão que faz para atingir a dinâmica da natureza e da cultura; quanto a ação / percepção desencadeada através da obra de Sara Ramo, que parte do banal do cotidiano e nos dá a dimensão da vida na imensidão da intimidade, são um convite a entrarmos num mundo que não tem fim nem tem começo, onde o real pulsa na sua radicalidade imanente.
Marcio Doctors
Curador da Fundação Eva Klabin